sábado, 6 de agosto de 2011

"We are the world" por Fernando de Barros e Silva

"Bolsas desabam e cresece medo de recessão mundial"; "Dilama tira Jobin da Defesa e põe o ex-chanceler Amorin". Eram esses os destaques da Primeira Página da Folha de ontem, um dia cheio de notícias. Mas nada rivaliza com a foto da criança somali desnutrida.

O olhar aflito, de dor e pânico; a boca escancarada, em desespero; os cabelos ralos e a pele enrugada, como se o corpo tivesse noventa anos; os pés retorcidos, as mãos e a cabeça desproporcionais, a deformidade do conjunto - tudo choca nesta figura que definha a caminho da morte
Estima-se que 29 mil crianças com menos de cinco anos morreram de fome na Somália nos últimos três mêses (méida de 10 mil por mês). Haveria, segundo a ONU, 640 mil crianças desnutridas no país. As estatísticas dão a dimensão da tragédia, ao mesmo tempo em que desumanizam. Seriam 10 milhões de pessoas passando fome, literalmente e em graus variados, em função da pior seca em décadas na região onde estão Etiópia, Quênia, Djibuti e Somália, o mais atingido.

No Brasil, Somália vitou apelido de alguns jogadores de futebol, pretos e esguios. Na África, é um lugar tão miserável e caótico que está fora do ranking de IDH da ONU - no qual a Etiópia ocupa o 157º lugar, num total de 169 nações.
No final dos anos 1960, durante a Guerra do Biafra, na Nigéria, a TV flagrou pela primeira vez imagens de mortes em massa provocadas pela fome. Mas foi nos anos 1980, com a crise na Etiópia, que a nata do mundo artístico se mobilizou e quis dar dimensão global à tragédia - época do "We are de World".
E hoje? A Somália é um território sem governo central há 20 anos, controlado por milícias e grupos islâmicos extremistas, devastado pela miséria e pela anomia social. Um lugar em que Bolsas, recessão, ministros, governo e notícias de jornal não significam nada. Mas o que significa pra nós a imagem da criança agonizante? Nós somos o mundo, mas a Somália está fora dele.

Folha de São Paulo, 6 de Agosto de 2011 - A2


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